quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Uma partida de mau gosto

Quando ainda era jovem, deliciava-me com passeios de bicicleta. Gostava de explorar novos caminhos, apreciar a paisagem e os transeuntes que por lá andavam. A escolha rotineira de uma rota fixa ou a paragem no sítio do costume para tomar um refresco um comer um repasto não me trazia qualquer satisfação. Sentia-me extasiado quando penetrava no labirinto das ruas e estradas desconhecidas e emergia do outro lado, encontrando-me por vezes em caminho conhecido sem me dar conta. Indagava o que se passaria por trás das portas e janelas daquelas casas que nunca antes vira, das avenças e desavenças, atinos e desatinos, amores e desamores que constituiam as histórias dos seus habitantes. A ideia de que a convivência entre todos aqueles estranhos poderia ter uma riqueza dramática muito superior à que encontramos em qualquer romance. Era possível que moradores de localidades que calcorreava num dia tivessem uma relação, directa ou indirecta, com habitantes de outras localidades que visitava num outro dia, ou iriam estabelecê-la no futuro. Enquanto passava por uma dessas ruas desconhecidas, reparei numa localidade onde se erguiam dois edifícios de três andares que se percebia serem compostos por vários apartamentos. Percebiam-se três blocos por edifício separados por duas alas de escadas. Os prédios ladeavam uma pequena rua que desembocava num terréu. Questionei-me se algum dia iria conhecer alguém que ali morasse.
Há anos atrás, a escassez de componentes do grupo etnográfico da localidade onde habito colocava em risco a continuação da sua actividade. O problema fazia-se sentir com maior intensidade na constituição da orquestra. Foi-me endereçado o convite para ter aulas de concertina de modo a colmatar essa falha em particular. Anui. Com apenas quatro aulas desse instrumento já me consideraram apto para acompanhar os ensaios do grupo e, em termos didácticos, por aí me fiquei. Desenvolvendo a minha técnica de forma autodidática, ao fim de poucos anos, tornara-me um conhecido executante desse instrumento. A fama valeu-me uns convites para actuar em outros grupos etnográficos. Um desses grupos em particular, acabaria por construir a sua sede no final da rua que era ladeada pelos prédios de apartamentos. Ao estabelecer amizade com aqueles moradores, lembrei-me do dia que passara de bicicleta numa rua ali perto. Tratava-se de um bairro social.
Mesmo depois de abandonar as lides folclóricas, era frequente fazer pequenos espectáculos para os fregueses da sede, especialmente ao fim-de-semana. Após um desses espectáculos, fui abordado pelo Libório que se acabara de mudar para aquele bairro. Propôs-me a formação de uma banda musical orientada para a música popular. O Libório era experiente baterista e tinha conhecimentos de piano e guitarra eléctrica. Acedi ao pedido na condição de reduzir o número de ensaios com vocalistas com recurso a gravações. Abordámos o Osonório, um excelente vocalista com uma boa presença em palco. O Libório decidiu acrescentar um segundo vocalista, o Paracetamório, que, entre empregos temporários, tinha a necessidade de angariar alguns fundos extraordinários.
O Paracetamório era uma vítima frequente de partidas de mau gosto. Não porque não fosse estimado pelos amigos mas porque se predispunha a isso. Cheguei a ver o Libório a adulterar um pacote de açúcar com sais de frutos que, quando colocado sobre o café, faz com que este crie uma cascata, escorrendo pelas extremidades da chávena. É claro que o Paracetamório constituiu a primeira vítima. Esta partida foi subsequentemente estendida aos vários clientes assíduos da casa. Certo dia, o Libório imprimiu apenas uma face de uma nota de €50 que deixou à saída do bar da sede, observando a reacção de quem ali entrava. O Paracetamório, dada a sua experiência como vítima de partidas de mau gosto determinou automaticamente a falsidade da nota. Curiosamente, teria sido o Centrumório, irmão do Libório, a causar um ambiente mais eufórico. Quando se deparou com a nota no chão, calcou-a para escondê-la dos demais presentes. Quando pressentiu que ninguém reparava, colocou-a no bolso e usou-a num outro estabelecimento. A risada foi geral quando se mostrou indignado por ter tentado usar uma nota falsa na aquisição de bens. O Libório contara-me também que o Paracetamório, enquanto trabalhavam na mesma obra, costumava urinar no mesmo sítio e à mesma hora. A certa altura, alguém se lembrou de colocar uma placa metálica submetida a um potencial eléctrico levemente coberta com pó. É claro que a rotina do Paracetamório valeu-lhe, nesse dia, um forte formigueiro sobre o corpo e um penteado diferente.
Durante uns anos, aquele bar tornou-se o ponto de encontro de adolescentes de localidades ali perto. De entre eles, destacava-se a Ritalina pela sua capacidade para criar enredos dramáticos, tendo como personagem principal, a sua prima Actifina. A Ritalina criava intrigas e usava-se da sedução para causar prejuízo às relações amorosas da Actifina. Ao usar a sua capacidade sedutora sem escrúpulos, passou a ser conhecida pela sua leviandade, apesar de ser menor de idade. Confesso que o seu comportamento me causava uma certa antipatia devido ao efeito dos enredos que criava tinha naquele nosso grupo de jovens.
Um dia, a Ritalina abeirou-se de mim e disse-me:
- Olha! Tu diz ao teu amigo que me anda a assediar por telefone e eu sou menor de idade!
- Que amigo? - Perguntei-lhe.
- Aquele que canta na tua banda, o Paracetamório.
- Que tenho eu a ver com isso? - Returqui-lhe em modo de pergunta. - Mas deixa estar que eu falo com ele.
O Paracetamório encontrava-se a trabalhar na construção em Lisboa e não era nada frequente telefonar-me. Coincidiu contactar-me nesse preciso momento.
- O Paracetamório está a tentar ligar-me. Vou tratar do assunto. - Disse eu à Ritalina.
Atendi a chamada telefónica e, antes que ele falasse, disse-lhe:
- A polícia esteve a falar comigo a perguntar se te conhecia. Eu disse-lhes que, apesar de te conhecer por seres vocalista da nossa banda, não lhes poderia facultar informação adicional.
- O que andaste a fazer? - Acrescentei.
- Deve ter sido por ter mandado uma mensagem à Ritalina. - Returquiu.
- Fala com o Libório, pois parece que a polícia ainda não o interpelou.
- Vou falar com ele. - Finalizou o Paracetamório, desligando o telefone.
Pensei que o Libório libório dissipasse esta pequena partida. Porém, de forma novamente coincidente, aprochega-se o Libório.
- Olha, o Paracetamório vai-te ligar. Disse-lhe que a polícia tinha falado comigo mas não lhe tinha facultado grande informação. Parece que andou a mandar mensagens impróprias à Ritalina.
Entretanto ouve-se o telemóvel do Libório. Tratava-se da esperada chamada do Paracetamório. Antes que ele começasse a falar, começa o Libório:
- A polícia anda a tentar saber onde moras. Não fui o único a ser interpelado.
Despedi-me do Libório enquanto ele falava com o Paracetamório, na esperança de que não prolongasse muito a pequena partida.
No dia seguinte, recebi um telefonema do Libório:
- A história é para ser mantida, o Paracetamório não pode saber a verdade.
Contou-me então que convencera muita gente a ligar-lhe a perguntar o que se passava porque a polícia andava a investigá-lo. Alguém tivera-lhe dito que o pai da Ritalina também andava à sua procura com o intuito de o punir fisicamente.
O Paracetamório, não conseguindo descansar, pedui ao patrão que o trouxesse de volta pois tinha de resolver o problema. Fizeram cerca de trezentos quilómetros durante a madrugada. Quando o Paracetamório chegou a casa telefonou ao Libório:
- Estou em casa e vou agora ao tribunal.
- Espera por mim antes de ires, preciso falar contigo.
A preocupação do Libório era notória. O caso tinha descambado demais. Apesar da convicção do Paracetamório, o Libório convenceu-o a esquecer o tribunal, alegando que ele próprio iria resolver o problema. O Paracetamório acedeu mas a mentira continuo a ser a sua verdade. O susto foi grande. Uma queixa em tribunal oriunda de uma intriga insignificante iria trazer problemas aos intervenientes.
O Paracetamório foi alvo de piadas sobre pedofilia a partir daquele episódio. Consta-se que enjoou o arroz de miúdos.