quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Vai lá cheirar

Era uma daquelas noites de Outono, quando este adivinhava um Inverno rigoroso. O frio já se fazia sentir, apesar do ligeiro aquecimento devido à grande nebolusidade do céu. Uma amiga do Osonório comemorava o seu aniversário num botequo algures no meio de um lugarejo isolado de qualquer grande cidade.
O pequeno restaurante, apesar de carecer daquela elegância mínima que é habitualmente requerida por quem se entrega aos prazeres gastronómicos, proporcionava agradáveis refeições cozinhadas, na hora, ao braseiro. Além disso, contava-se com a cordialidade e o ambiente familiar que lá se fazia sentir sendo, talvez, esse o principal motivo que levava os amigos do Osonório a optarem por aquele estabelecimento.
O Osonório repetiu o repasto algumas vezes, acompanhando com um vinho tinto suave mas com um considerável grau de álcool. Comeu e bebeu até ficar enfastiado, rematando, no final, com os usuais digestivos. A festa ainda estava por começar e já se encontravam quase todos num elevado estado de ebriez, cantando e dançando como se o chão se abalasse ao sabor de uma força misteriosa.
A saída do boteco, quando noite já ia alta, fez-se acompanhar pelo som acutilante e o cheiro a borracha queimada dos pneus a derraparem violentamente no asfalto. Talvez fosse o estado de embriaguez, talvez fosse o resultado duma estranha euforia. Foi, decerto, o despertar daquela irreverência característica da juventude, aquela necessidade de se fazerem ouvir e marcarem presença. O seu destino foi um movimentado bar da cidade mais próxima, do qual eram já clientes habituais.
Quando o Osonório chegou, já lá se encontrava, à espera, o seu amigo inseparável Libório. Apesar de ser uma amiga em comum, o Libório sentiu-se na obrigação de declinar o convite para o aniversário sob a alçada dum sincero pretexto relacionado com problemas financeiros.
O seu grupo de amigos era socialmente heterogénio. O Libório e o Osonório sempre foram indivíduos despreconceituosos e aceitavam, para amizade, certa gente que se entregava, casualmente, ao consumo de estupefacientes. Muitas vezes, as companhias ditam a forma como uma sociedade essencialmente preconceituosa encara as pessoas. É claro que alguém cujas amizades incluam personagens com certos vícios não será, necessariamente, um viciado, apesar de correr o risco de lhe serem imputadas tais contornos.
A música do bar convidava ao balanço impulsivo do corpo e a sede mandava vir, regularmente, aquele tipo de bebidas que dão um certo grau de êxase a quem as consome exageradamente. O Osonório, que já tinha exagerado a dose no jantar, misturava, ao sabor do balanço, aquelas que ia tragando durante a faina nocturna. O resultado, para além da ebriedade, consistiu naquilo a que vulgarmente chamamos de “descarga da visícula” causada pelo trabalho excessivo pespegado ao fígado. A maleita manifestou-se como uma pontada na barriga, queixando-se o Osonório:

- Ó Libório, estou com uma vontade insuportável de mandar uma valente cagada.

O Libório acompanhou-o até à porta da casa-de-banho, enquanto saboreava um refrigerante, uma vez que, devido à sua condição de saúde, se encontrava medicado com psicotrópicos.

- O que é que ele está aí dentro a fazer? – Perguntou um indivíduo corpulento, deixando antever traços de fúria, apesar de não intimidar o Libório.

Os seus amigos cujos comportamentos eram mais ilícitos tinham, por hábito, recorrer à sala da latrina para fumar um “piquinha”. O indivíduo que acabara de interpelar o Libório parecia convicto de que o Osonório padecia das mesmas necessidades ou tinha os mesmos hábitos que os seus amigos. O Libório desconfiou da natureza da pergunta, à qual responde:

- Está a cagar!

O indivíduo não fazia parte do pessoal da casa, estando apenas a alardear-se como um herói de banda desenhada, querendo impôr uma ideia de ser o gendarme da retrete. Coninua com a mesma intensidade de voz:

- Eu sei o que ele ali está a fazer. Está a fumar droga.

- Não está nada... está a cagar. – Returque o Libório.

O Osonório, que ouvira o alvoroço, levantou-se num rompante, sem limpar convenientemente o cú ou sequer puxar o autoclismo, içou as calças com toda a pressa e abriu violentamente a porta, gritando:

- Se achas que estive a fumar, vai lá cheirar.

Ambos continuaram o seu entretenimento. O sujeito entrou no cubículo no qual a merda pastosa estava colada às paredes da cloaca, deitando um cheiro tão fétido que drogava qualquer um. Começou como um herói de banda desenhada e acabou como um “cheira merda”.

Sem comentários:

Enviar um comentário