sábado, 20 de março de 2010

Uma desilusão numa prenda de amor

Por vezes, num grupo de pessoas surgem, inimizades difíceis de explicar. É possível traçar uma linha de sentimentos possam estar na base desses fenómenos, que encaixem na perfeição nos comportamentos observados mas que de certo modo está muito longe da realidade. Muitas vezes apenas uma ou duas pessoas estão em posição de os esclarecer pois estão cientes dos segredos e pensamentos obscuros de alguns dos intervenientes mas optam pelo silêncio ou por causar mais estribilho, deturpando ainda mais uma realidade que, já de si, se torna complicada.
É frequente encontrar exemplos banais nas paixões secretas. Este tipo de sentimento conduz facilmente a um sistema de intrigas que acabam no doloso rompimento de antigos laços de amizade e afecto. Um outro exemplo relaciona-se com a primeira impressão que uma pessoa tem da outra quando se conhecem pela primeira vez. É tão viável dar-se aquilo a que vulgarmente se chama de amor à primeira vista como de se nutrir, desde o princípio, uma estranha aversão a uma pessoa sem qualquer motivo racional aparente.
Este último fenómeno passou-se com o Jorge, um indivíduo que terminara o ciclo do secundário e ingressara no curso de engenharia informática numa universidade privada da Beira Interior. As suas capacidades na área em questão eram indiscutíveis. Tratava-se de uma pessoa com uma capacidade de raciocínio acima da média nestas vertentes e possuía um carisma fora do vulgar no que concerne a tais lides. Não conseguira um lugar no ensino público única e exclusivamente devido aos seus fracos resultados nos demais campos cuja avaliação de desempenho é exigido. Não nos delonguemos mais neste preâmbulo que daria uma enorme quantidade de matéria para discussão. Como é fácil imaginar, destacou-se amplamente do resto da turma, ocupando um lugar de destaque claramente visível. O Jorge levou apenas um ano para se salientar no curso que frequentava.
Decorria o seu segundo ano, quando se sente fortemente discriminado pelo Rui e pelo Ruben, com especial destaque para o primeiro. Era frequente ouvir expressões do tipo “Lá vem a merda” ou “Vamos sair daqui” sempre que o Jorge se abeirava deles. Certo dia, ia ele a caminho da universidade quando avistou do mesmo lado da rua, grande parte dos colegas de turma. Entre essas pessoas encontravam-se o Rui e o Ruben. Quando o Jorge se aproximou, como é hábito quando encontramos pessoas com as quais lidamos diariamente, o Rui convidou de imediato toda a gente do grupo a atravessar a rua para o outro lado. Não foi muito difícil, apesar de aborrecido, ao Jorge, constatar que se tratava de uma manobra de evasão e de repúdio. Nesse dia, surge-lhe uma ideia que, mais tarde, viria a ter consequências generalizadas.
As acções do Rui e do Ruben, porventura, tinham origem em sentimentos de inveja. De facto, estavam longe de conseguir uma performance tão brilhante e não se constava que alguma vez no passado se tivessem dedicado tanto a programação como era o seu caso. Trata-se de uma inveja infundada. Mas os sentimentos individualizados normalmente são conduzidos por caminhos assaz obscuros. Talvez fossem quezílias de amor ou até mesmo a predisposição natural de um macho demarcar o seu território. No entanto, o que ia na cabeça do Rui, não se figurou aparente ao Jorge que se sentia cada vez mais afastado da turma, mais isolado.
Quando lhe surge a ideia, troca algumas palavras com um dos seus melhores amigos, o Francisco, que não tinha qualquer filiação com a faculdade que frequentava. Conta-lhe o sucedido e avisa-o de que se prepara para responder severamente às acções do Rui e do Ruben. Arranjadas as fotografias de ambos, decide fazer uma montagem onde estes apareciam em situações risíveis e embaraçosas. A cara do Rui, inseriu num homem que estava a ter relações sexuais com um automóvel e a do Ruben, montou-a num canguru. Pediu o auxílio do Francisco para detalhar esta ideia de forma a pô-los ao ridículo e a fazê-los sentir o que ele sentia quando estes abusavam da linguagem para o humilhar, enviando um e-mail para a turma toda.
O Francisco sugeriu a ideia de que ele deveria criar os textos nos moldes de uma notícia jornalística. Imediatamente congeminaram a notícia de que o Rui fora apanhado a ter relações sexuais intensas com um cano de escape de um automóvel, um fetiche deveras estranho. Quanto ao canguru, o Francisco sugeriu-lhe que o inserisse numa paisagem nórdica. O Jorge coloca-o solitário no meio de uma centena de pinguins. Mais uma vez elaboraram a notícia de que o Ruben andava pela Patagónia à procura de fêmea, um outro caso insólito. Enviou ambas as notícias para cada colega da turma de forma anónima.
Tanto o Rui como o Ruben foram motivo de chacota nos dias seguintes. As notícias bem elaboradas e as imagens caricatas faziam vigorar um sentimento de motejo em qualquer pessoa que as leu. A resposta do Ruben foi dura mas não tinha pessoa física a quem dirigi-la. Apesar de desconfiarem dele, nunca poderiam estar certos disso. O Ruben após o sucedido moderou o seu comportamento relativamente ao Jorge apesar de o Rui continuar na mesma. Ser motivo de chacota não o havia sensibilizado para a situação desse seu colega.
O pai do Jorge, mecânico de automóveis, fazia reparação e substituição dos seus componentes. O Jorge estava a par das alterações que eram feitas nos veículos das pessoas com quem tinha maior confiança. Certo dia, um amigo decidiu trocar a panela de escape do seu carro por uma nova. O Jorge, como gostava de avaliar o material que era comprado em termos de qualidade, comenta com o Francisco as vantagens e desvantagens da nova aquisição desse seu amigo. O Francisco, que não era propriamente dotado de grandes conhecimentos de mecânica, pergunta-lhe o que iriam fazer com a panela velha. Obviamente, o seu destino seria a sucata, que é o destino da maioria dos utensílios para os quais não temos uso. Foi assim que, numa mesa de café, surge uma ideia assaz estranha na cabeça do Francisco.
- Já que o teu pai não tem qualquer uso para a panela, porque não a dás ao Rui como prenda?
Sugere o Francisco a título de brincadeira. Tratava-se de uma ideia tão esquisita que nunca pensava que fosse levada a cabo uns dias depois. No entanto, tal ideia emergiu para relembrar os e-mails enviados, num ambiente hilariante e eufórico, surgindo aqui e acolá umas piadas mais ou menos engraçadas sobre o assunto.
Passados alguns dias, o Jorge, na oficina do seu pai, mostra ao Francisco a panela da qual tinham conversado há um tempo atrás, dizendo:
- Estou empenhado em oferecer isto ao Rui mas para a minha mãe não saber do meu plano, disse-lhe a ias dar a um amigo, como brincadeira.
O Francisco tinha dificuldade em acreditar que fosse objectivo do Jorge, dar uma panela de escape ao Rui. Contudo, confirmou à mãe do Jorge o seu intento de oferecer a panela a um amigo no seu aniversário com o intuito de lhe pregar uma partida. A mãe dele quis, de imediato, saber os pormenores, os quais o Francisco improvisou de imediato.
Numa outra conversa ocasional de café, surge o método que seria utilizado para levar o Rui a aceitar e abrir uma prenda tão bizarra. Seria oferecida como uma prenda de amor, numa caixa de cartão embrulhada em papel cor-de-rosa aos corações, à qual era adendada uma terna e apaixonada mensagem. Esta seria deixada numa sala pública da faculdade, onde o Rui passasse grande parte do tempo, devidamente endereçada a ele sem haver margem para qualquer tipo de dúvidas. Vendo que a ideia era exequível, puseram mãos à obra.
O Jorge comprou o papel de embrulho, o Francisco providenciou a caixa e ambos preparam a mensagem de amor. Estavam assim reunidos quase todos os condimentos para levar a cabo a empreitada. Ainda faltava algo para aprimorar o ambiente, um texto que estivesse, de alguma forma, ligado à panela, de acordo com uma proposta do Jorge. O Francisco sugere a escrita de manuais de instrução em várias línguas, seguindo a linha condutora dos e-mails antes enviados. Estes seriam escritos numa linguagem e estilo tais que esboçassem um grande sorriso na face da pessoa mais sisuda.
Apenas uma tarde num fim-de-semana foi suficiente para completar as tarefas. Era um sábado de sol e, tanto o Jorge como o Francisco, se dedicaram por inteiro à elaboração dos manuais, os quais foram convenientemente editados pelo Jorge no dia seguinte. Nesse domingo, já com os manuais devidamente preparados, reuniram-se para finalizar os preparativos de tão ousada oferenda. Embalaram os manuais e colocaram-nos numa caixa de cartão junto da panela de escape. Depois de a selarem com fita de mangueira de modo a conter a peça, embrulharam a caixa com duas folhas de embrulho dum rosa vivo e aplicaram-lhe um laço de fita doirada. Sem dúvida seria uma prenda para chamar a atenção de qualquer um.
Na terça-feira que se seguiu, o Jorge madrugou para levar a oferenda a bom porto sem ser identificado. Agasalhou-se com uma capa com o intuito de ocultar o embrulho e pôs uns óculos de ciclista para ninguém o reconhecer. Entrou na faculdade ainda não tinha começado a raiar o dia, dirigindo-se à sala onde a prenda iria aguardar o seu destinatário, o qual se previa chegar depois do almoço. O átrio estava deserto e o porteiro pareceu-lhe estar distraído. Era a altura ideal para deixar a encomenda.
Na altura em que se preparava para largar a encomenda numa mesa previamente escolhida da sala de computadores, abeira-se dele o porteiro que, com um ar deveras sisudo, lhe pergunta:
- Isso é algum galinheiro?
- É! Respondeu o Jorge, pousando o pacote e escapulindo-se dali, pensando em voltar apenas no dia seguinte. Por fim, alguma coisa tinha corrido mal e o anonimato pretendido tinha sido comprometido por um porteiro que parecia estar desatento, queixando-se ao Francisco desse sério deslize. Afinal, corria o risco de ser descoberto e sofrer retaliações. De qualquer modo, só teve novidades da peripécia no dia seguinte.
Era quarta-feira de manhã quando o Jorge foi à faculdade como é habitual na rotina de qualquer estudante. Contudo, esse dia estaria longe de ser um dia rotineiro. Toda a gente que passava por ele se ria e o cumprimentava efusivamente, incluindo professores e funcionários. Sentiu no ar, um ambiente deveras hilariante. Finalmente aproxima-se dos seus colegas de turma que partilhavam o mesmo estado de espírito dos demais que o Jorge havia cruzado no átrio e corredores da faculdade. Perguntavam quase em uníssono:
- Foste tu?
Como é óbvio, o Jorge, fazendo um ar de despercebido, returque à pergunta com outra pergunta:
- Fui eu o quê?
Contaram-lhe, então, o caricato episódio que tinha acontecido no dia anterior. Foi aí que o Jorge ficou a saber como se desfechou a partida, negando a sua autoria, para se manter no anonimato. O Rui era outra pessoa. Procurava, a todo o custo, descobrir o detestável autor. Aliás, tratava-se de um sentimento generalizado. Na cantina, os funcionários brincavam com ele:
- Ainda te vão levar preso!
O Jorge mantinha-se firme, afirmando que nada tinha a ver com o assunto. Outros afirmavam que se sentiriam orgulhosos de envidar uma cena tão minuciosamente elaborada. O Carlos propôs-se descobrir o autor. Era um veterano no curso e, porventura, sentia necessidade de esclarecer a situação. Decorria a tarde quando o Carlos afirma:
- Foste tu, Jorge. O porteiro acabou de ter expor.
O seu grande receio do dia anterior acabava de ganhar forma. Foi forçado a admitir tanto a autoria daquela partida como dos e-mails enviados uns tempos antes, explicando as razões que o levaram a tomar tão drásticas atitudes. De facto, foi o Carlos que moderou os comportamentos compulsivos do Rui e do Ruben. O Rui foi apresentar queixa à provedoria e o Ruben concluiu que o incidente não o relacionava, pelo menos directamente. O Rui, com ares de quem tinha os sentimentos feridos, dizia:
- Achei muito desagradável. Aliás, considerei um insulto. Estive toda a manhã a receber mensagens no telemóvel e chamadas telefónicas de pessoas que me conheciam, estando curiosas para saber o que continha tão bela prenda. Acrescentavam que eu devia ter um grande amor. Eu, na minha inocência, imagino que finalmente alguém me ama. Quando chego à faculdade, está um ror de gente, incluindo empregados, de volta da prenda, bradando: «chegou o felizardo!» Quando vou a abrir a prenda, para alem da dificuldade que apresentou, surge uma panela com manuais. Foi uma risota geral. Considerei isso mesmo muito desagradável.
Toda a gente gabava a argúcia do Jorge e, com base nos relatos, foi-lhe possível recriar tão esperado desfecho. O Rui começou a receber, intermitentemente, mensagens e telefonemas ainda não se tinha levantado. Uns mandaram-lhe a mensagem de amor que seguia em anexo na oferenda, outros parabenizavam-no pela sorte que o abraçava. Alguns até chegaram ao ponto de fotografar a prenda que lhe era dirigida. Sem margem para dúvidas, sentia-se no dia mais feliz da vida, como mais tarde o assumiu. Não fazia ideia do que o esperava da parte da tarde nessa estranha terça-feira.
O Rui entra na faculdade, passava meia hora da uma. Aliás, como já era habitual. Aproximou-se da sala onde se encontrava o tão cobiçado embrulho. A sala era pequena e os curiosos eram tantos que enchiam completamente o átrio à espera de ver o que lhe tinha sido oferecido, avisando que acabava de chegar um homem feliz. O Rui pousa a prenda num dos bancos do recinto, desembrulha-a e abre a caixa deixando transparecer um ar de júbilo. Quando, por fim, conseguiu abrir a caixa, o ar de júbilo transforma-se repentinamente num ar de consternação e até de choque. Algumas pessoas que assistiram ao espectáculo ainda se riem só de se lembrarem da sua cara nesse momento. A prenda que outrora havia sido de amor transformara-se numa desilusão em poucos segundos.
Tirou a dádiva da caixa e toda a gente pode constatar tratar-se de uma panela de escape. Tudo desatou à gargalhada, tanto quem tinha lido os e-mails como todos os outros. Uns caiam para o chão e outros seguravam-se às colunas. Para aprimorar ainda mais tamanha euforia, verificaram que a panela trazia manuais com um teor tão ridículo que a risada se prolongou durante muito tempo. Para os que não tinham lido os e-mails, o propósito da prenda era incompreensível mas de tal forma hilariante que não contiveram as fortes gargalhadas. A provedora, que acabou por ter em mãos um caso tão exuberante mas delicado, queixava-se ao Jorge:
- Eu mesma presenciei o evento, um dia depois de assistir a uma palestra sobre o espírito de solidariedade e amizade entre pessoas numa instituição. O átrio estava lindo como eu nunca tinha visto antes, cheio de gente. A mensagem de amor era linda, tão bem elaborada. Quando o Rui abriu o presente, nem quis acreditar no que lá estava. Simplesmente não conseguia entender. Toda a gente se ria mas eu senti-me triste. Até me vieram as lágrimas aos olhos. Os manuais, com aquela linguagem tão baixa, nem pareciam ter sido escritos pela mesma pessoa. Ainda hoje me custa a acreditar que alguém foi capaz de levar a cabo uma coisa daquelas.
A punição aplicada ao Jorge não é nada relevante para ser aqui descrita. O Rui nunca mais foi o mesmo. Um acontecimento destes não se apaga assim da memória das pessoas. Quem presenciou o espectáculo talvez se lembre do sucedido uns bons anos mais tarde e o Rui nunca o esquecerá. O Jorge comprometeu-se a não repetir a proeza.
A amizade é um condimento essencial na convivência de pessoas em grupo. Se esse nobre sentimento não for cultivado, acaba-se sempre com uma panela de escape nas mãos. E foi uma panela de escape que transformou uma prenda de amor numa desilusão.

1 comentário:

  1. Algo feito a um nível sublime de concentração e projecção...
    Não é para todos a ideia, quanto mais a perfeição do resultado esperado hehe
    Só para quem pode!

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